domingo, 9 de fevereiro de 2014

'Não podemos viver num mundo em que as pessoas acreditam na vingança', diz socióloga

No Rio de Janeiro, o caso de um adolescente de 15 anos preso a um poste por uma trava de bicicleta, divulgado durante a semana, levantou o debate: é certo procurar justiça pelas próprias mãos? A reportagem que começa agora pretende dar essa resposta.
Falta presença do estado? "Onde as pessoas tomam justiça com as próprias mãos é onde tem pouco policiamento, Onde tem poucas regras, onde tem a falta de um governo, de um estado sobre a população”, declara um homem.
Balsas, cidade a 600 quilômetros de São LuísMaranhão. No vídeo postado nas redes sociais um homem aparece apanhando de várias pessoas. O motivo da surra? Ele assaltou um açougue, e, na fuga, tentou roubar uma moto. Até crianças testemunham a cena. Durante os 11 minutos da gravação, nem sinal da polícia.
Falta policiamento? “Não pode agredir. Tem que saber o que tá acontecendo primeiro para depois resolver o problema”, opina um homem.
Taboquinhas, distrito de Itacaré, na Bahia. Depois de assaltar uma casa, um homem tentou fugir.
Foi pego pela população, agredido e amarrado com cordas.
Como o delegado estava fora da cidade, o homem foi levado para a cadeia de Ilhéus, a 70 quilômetros de lá.
Falta educação? “Violência gera violência. Isso não vai adiantar de nada. Não vai levar a nada. É educação, ao longo do tempo, que vai dar jeito nisso aí”, diz uma mulher.
“Hoje em dia muitos botam culpas nas crianças, nos adolescentes. Mas e antes? Como é que eles tão sendo tratados, cuidados?”, declara um homem.
Rio de Janeiro, terça-feira passada. Um menor é pego tentando furtar um supermercado em Copacabana. Uma multidão pede o linchamento dele.
“As pessoas pediam 'dá porrada! Mata! Prende! Você não presta!'”, conta Eduardo Homem de Carvalho, jornalista.
Eduardo passava pelo local e registrou a cena. “Me parecia uma cena da Idade Média, onde as pessoas são apedrejadas em praça pública em uma condição dessas. Lamentável”, conta o jornalista.
Na confusão, o menor atirou uma pedra em um segurança, e foi levado para o interior da loja até a chegada da Guarda Municipal.
Falta justiça? “Quem tem agir isso é a legislação, é o poder judiciário. Eles que tem que fazer“, afirma um homem.
Um dos episódios mais recentes em que a população decidiu fazer Justiça com as próprias mãos aconteceu em um poste, que fica no Aterro do Flamengo, zona sul do Rio, umas das áreas que mais tem sofrido com o aumento de assaltos na cidade.
Um grupo cercou e imobilizou um menor de idade, e usando uma trava de bicicleta, prendeu o menino ao poste pelo pescoço. Depois, tiraram a roupa e o deixaram nu.
O caso gerou muito debate sobre a questão da violência. E entre tantas perguntas sobre motivos e soluções, duas parecem sobressair na discussão: A que ponto chegamos? E que consequências este tipo de reação da população pode trazer?
São muitas perguntas e poucas respostas para o assunto mais discutido da semana.
Nós localizamos um dos jovens que participa do grupo de justiceiros que prendeu o menor no poste. Ele pediu para não ser identificado.
Justiceiro: A gente sai em uma ronda para procurar esses criminosos. A gente bate, dá uma lição de moral, impõe a moral, impõe respeito em cima deles e depois libera. Como se nós fossemos os policiais do bairro.
Fantástico: Já aconteceu de algum ficar machucado?
Justiceiro: Sim, bastante.
Fantástico: Como?
Justiceiro: Sangrando. Um com braço quebrado, outro desmaiado.
Fantástico: Você se arrepende?
Justiceiro:  Sinceramente, não.
Fantástico: Como vocês se sentem depois que vocês fazem isso?
Justiceiro: Com uma paz. Sinceramente com uma paz pra gente mesmo, como se a gente tivesse com dever cumprido.
Para um jurista, não há dúvidas: quem responde à violência com mais violência também está cometendo crime. “Passam a cometer crime de formação de quadrilha e nesses casos específicos até mesmo de lesão corporal”, explica Abel Gomes, jurista.
O jovem agressor, que tem 20 anos, diz que não estava no dia da ação.
Justiceiro: Até soube pelo Facebook também.
Fantástico: Você achou exagero?
Justiceiro: Eu e meu grupo a gente cometeria a mesma ação,
Fantástico: Os seus pais sabem que você faz parte desse grupo?
Justiceiro: Não.
Fantástico: E o que eles diriam se soubessem?
Justiceiro: Pelos comentários que eles falaram, eles acham certo.
Fantástico: E vocês são quantos agora?
Justiceiro: Somos por volta de 50.
Fantástico: Até quando vocês vão com essa ronda, com esse grupo justiceiro?
Justiceiro: A ronda, por enquanto, está parada. Se for preciso a gente volta. Eu acho que é correto a gente correr atrás, se não tem a justiça para correr atrás, o jeito é a gente tomar alguma precaução quanto a isso.
Fantástico: E você faria de novo?
Justiceiro: Sinceramente? A vontade é de fazer de novo, porque mesmo com policiamento não está dando certo.
Quem socorreu o menor preso ao poste foi a artista plástica Ivone Bezerra de Mello. Ela vem recebendo muitas ameaças como essa: "quem sabe os justiceiros não escolham ela como próximo alvo? Bandido bom é bandido morto".
Com medo de represálias, Ivone conversou com o Fantástico pela internet.
“Eu não sabia quem era, se era bandido, se não era bandido. Eu não conhecia aquele menino. Nunca tinha visto na minha vida. Aquilo foi um ato humanitário de tirar aquele menino que estava como se fosse num pau de arara, na minha rua. Esse ato que qualquer ser humano faria com ser humano, com cachorro preso lá numa casa, ou um gato em cima da árvore, provocou uma histeria coletiva na cidade, de ódio”, afirma Ivone Bezerra de Melo, Artista plástica.

Os bombeiros precisaram usar um maçarico para soltar o garoto da tranca.
“Isso precisa ser combatido com rigor, com determinação. Nós não podemos permitir que esses casos se multipliquem, isso é caminhar para um estado de barbárie. Nós não podemos viver em um mundo em que as pessoas acreditam na vingança, no olho por olho, dente por dente”, declara Julita Lemgruber, socióloga.
Mas, apesar da ampla repercussão nas redes sociais, ninguém registrou o caso na delegacia.
“A indignação na rede social ela passa para a imprensa e depois ela chega na polícia. Eu não sou obrigada a estar na rede social pra saber o que tá acontecendo. Esse registro que esse garoto é vítima, a comunicante sou eu, porque eu vi na imprensa e eu determinei que fosse feito um registro de ocorrência. Então, ocorreu um crime, o certo é comunicar direto na Polícia Civil”, diz Monique Vidal, delegada do caso.
Ricardo levou duas facadas no rosto durante um assalto na área onde os justiceiros estão atuando.
Fantástico: Esse grupo que está partindo para vingança pra justiça com as próprias mãos, te representa?
Ricardo Monte, analista de sistemas: De maneira nenhuma. Inclusive eu fui chamado para participar dessa caçada de justiceiro, e eu disse que isso não podia acontecer, que um crime não justifica um outro crime. 
Fantástico: Muita gente fala 'ah, é porque não é com você, é porque não é com ninguém da sua família'. Foi com você, e você ainda assim não abre mão dos seus princípios.
Ricardo: Aí sim eles estariam levando algo de importante, que seriam os princípios éticos e morais que a minha família me deu. A violência só gera violência.

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