“Isso aqui já foi um eldorado nos anos oitenta. Tirava R$ 300 por dia. Foi assim que sustentei meus cinco filhos. Hoje não tiro nem R$ 60 na semana. Quem lucrou, lucrou. Agora não lucra mais”. A frase é de Otávia de Souza, 68 anos. Assim como ela, cerca de 1400 catadores cadastrados trabalham atualmente no Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho, no município de Duque de Caxias, Baixada Fluminense.
O local, que já teve mais de cinco mil pessoas revirando diariamente as nove mil toneladas de lixo (vindas dos municípios de Caxias, São João de Meriti, Nilópolis, Belford Roxo, Queimados, Mesquita e Rio), está prestes a encerrar as atividades. O fechamento definitivo do despejo em Gramacho estava previsto para o dia 23 de abril, mas foi adiado para maio. O atraso aconteceu devido ao cadastramento das 1400 pessoas que terão direito a receber da Prefeitura do Rio os recursos do Fundo dos Catadores. Em parcela única, cada um dos catadores receberá cerca de R$ 14 mil.
Desde a inauguração em 2011 do Centro de Tratamento de Resíduos de Seropédica (CTR), a 75 quilômetros do Rio, a quantidade de lixo em Gramacho foi reduzindo. Segundo a secretaria de Conservação, o Rio produz 9 mil toneladas de resíduos diariamente e o CTR já recebe cerca de dois terços desse total. Em Seropédica, não há catadores. Marcio de Oliveira, 23 anos, um dos líderes da Associação dos Catadores de Jardim Gramacho, está preocupado com a situação que se avizinha. “Vai abalar muita gente que não sabe fazer outra coisa na vida, que não seja separar madeira, plástico e papel. Não sei o que essa gente vai fazer da vida”, diz Marcio.
Cena de novela e mala de dólares
Mãe de quatro filhos, Jaqueline Lopes, 35 anos, faz planos para quando receber a indenização. “Com o dinheiro que vai vir, quero terminar minha casinha”, diz ela, que convive com o ar sufocante de Jardim Gramacho desde os 12 anos, levada pela mãe. “Vejo a novela e relembro quando vinha pequena para cá. Não tinha jeito. Era isso ou morrer de fome”, recorda.
Jaqueline se refere à novela “Avenida Brasil” que retrata a realidade de quem vive em um lixão. No Jardim Gramacho já não se vê mais crianças trabalhando como na trama da TV Globo, mas se sabe que ali sempre foi habitado por personagens reais que mais parecem saídos do imaginário.
As histórias de gente que sustentou – e mobiliou - a casa com o que foi descartado por milhões de fluminenses brotam dos entulhos. Otávia de Souza repete há 23 anos a rotina de subir e descer a “rampa” três vezes por semana. Rampa é como os catadores chamam as montanhas de lixo que se acumulam às margens da Baía da Guanabara, desde a criação do lixão, em 1978. “A cerâmica que forma o piso lá de casa é toda daqui, achada no lixo. As portas e janelas também. E eu mesma fiz, porque não podia pagar pela mão de obra. O chão do meu quarto tem pedacinhos de mármore que fui guardando”, relata Otávia, que pretende comprar uma máquina de costura com o dinheiro da indenização.
Não demora muito e ela procura novamente a reportagem do iG. Mudou de ideia. “Não sei se vou comprar a máquina, não. Quero mesmo é ir para o pé da serra, comprar um barraquinho por lá e plantar verduras. Quero vender verdura para a cidade toda”, diz Otávia, afastando os muitos urubus ao seu redor.
Algumas das histórias contadas no lixão têm jeito de mito. “Teve um amigo nosso que uma vez achou uma mala tipo a do (filme) 007 e abriu. Estava cheia de dólares. Jogou tudo pro alto achando que era de brinquedo. Todo mundo avançou. Consegui uns 400 dólares”, conta Paulo Sergio, 41 anos, ex-dançarino de street dance. Teve um outro que achou uma garrafa fechada e bebeu pensando que era coca-cola. Morreu em minutos. Era soda cáustica.
Documentário premiado
Foi neste mesmo ambiente que viveu Estamira Gomes de Sousa, protagonista do documentário “Estamira”, de Marcos Prado (Veja outros casos que ganharam a ficção). Com seu discurso filosófico e poético, Estamira, que faleceu no final de 2011, virou referência. Assim como os catadores que serviram de modelo para os trabalhos do artista plástico Vik Muniz. “Quero ser como o Tião, ainda vou ganhar muito dinheiro”, planeja o simpático Geraldo Oliveira, em alusão ao ex-catador Tião Santos, que inspirou trabalhos de Muniz.
Geraldo é dos catadores mais conhecidos em Jardim Gramacho. Mas pelo apelido de Brizola. Diz para todos que foi motorista do ex-governador do Rio. Aos 59 anos, já veio e foi embora do aterro sanitário várias vezes. Sempre prometendo não mais retornar. “Ia cortar cana em Campos, minha terra. Mas os canaviais de lá estão contratando cada vez menos gente”, lamenta. Brizola é uma figura. Apesar da vida severa no lixo, tira espaço para o humor. Imita com perfeição o apresentador Wagner Montes, até no modo de andar.
O futuro de Gramacho
Preparando-se para a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, que será realizada de 13 a 22 de junho na cidade, a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb), inaugura no dia 5 de maio a Usina de Biogás do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho. A implantação do sistema de captação e queima do biogás é um dos projetos de redução de emissões de gases do efeito estufa no País.
As três tochas da usina são alimentadas por uma rede de gasodutos que transportam o biogás succionado de 230 poços de captação, localizados ao longo da superfície do aterro. Pelos cálculos da Comlurb, isto evitará que, nos próximos 15 anos, cerca de 75 milhões de metros cúbicos de metano por ano sejam liberados para atmosfera. Com movimentação econômica estimada em R$ 407 milhões, o projeto pretende manter o aterro por mais 15 anos após o encerramento do despejo de lixo, além do monitoramento ambiental e geotécnico da região. “O aterro vai gerar renda pelos próximos 15 anos com a venda de biogás e créditos de carbono. O que a prefeitura do Rio está fazendo é antecipar os recursos aos catadores cadastrados junto a cooperativas”, explica ao iG o secretário municipal de Conservação e Serviços Públicos, Carlos Roberto Osorio.
Naquele mesmo dia da visita da reportagem do iG, Gramacho ainda receberia uma rede de TV japonesa e da equipe de um jornal peruano. A Comlurb tem recebido pedidos de visitação de várias partes do mundo. O fechamento do maior lixão da América Latina porá fim também ao emblemático depósito de histórias que a realidade tentou descartar.
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