Raphaela Laet, também conhecida como Queen B , é uma das musas dos jovens fãs de jogos na Internet no Brasil. Aos 20 anos, ela é craque no League of Legends, o jogo online mais pop do mundo, com 27 milhões de jogadores por dia. Além disso, é loira e tem cabelos compridos que ganham mexas de cores diversas ao longo do ano, corpo cheio de curvas, quase dois metros de altura quando sobre saltos (ou seja, sempre), sua maquiagem costuma ser caprichadíssima e ela desfila num guarda-roupas de peças minúsculas (a foto acima foi tirada em um raro momento em que ela posava para o ensaio de um amigo). Sua imagem jogando ao vivo League of Legends já chegou a 11 mil espectadores em uma só partida. Os selfies de Rapha, como é chamada pela família, com quem mora em Guarulhos, têm centenas de curtidas e dezenas de comentários no Facebook. A página criada em setembro já tem quase 5 mil seguidores.
“Queen”. “Diva”. “Linda. “Musa”. “Eu quero ser vc”. “Eu quero vc”. São algumas das frases que se desdobram da aba de comentários da personagem Queen B (diminutivo para abelha rainha em inglês). Os elogios fortalecem a autoestima e a ajudam a encarar os comentários cruéis. Os ataques começam com pequenas provocações, como a palavra “trap” (armadilha, em inglês) e chegam ao ápice com palavras como “traveco” ou “travecão” estampadas sob suas fotos mais caprichadas.
Quando percebe que a violência vai começar, ela respira fundo e busca uma piada educada. Nem todos os fãs conhecem seu maior segredo: Rapha tem um coração generoso. Depois de uma vida ouvindo agressões de pessoas muito mais próximas, ela criou um escudo para se proteger. E até perdoa a ignorância de quem ainda não aprendeu a lidar com a sua complexidade.
Sim, Raphaela nasceu Raphael. Ela era bem pequena quando começou a rejeitar a identidade masculina. A primeira vez foi aos três anos, quando Rapha viu o próprio corpo refletido no espelho. “Lembrava de um livro que dizia que meninos tinham pipi, e eu tinha um pipi. Mas, como, se eu era menina?”, ela lembra. O momento ficou marcado na sua memória. Desde então, passou por um calvário de dúvidas, angústias e violências.
Só quando já era adolescente aprendeu o nome que se dá às pessoas que são como ela. Rapha é uma transexual, pessoa que não reconhece seu corpo e seu sexo. Como se uma menina tivesse nascido no corpo errado, de um menino. Há muitos casos assim no mundo todo. O ideal é que os transexuais sejam acompanhados por terapeutas, que ajudam a decidir se é mesmo o caso de fazer tratamento com hormônios e a operação para mudança de sexo. Seguindo a tendência dos Estados Unidos e da Europa, hospitais e escolas no Brasil são obrigados a tratar os transexuais pelo nome e pronome que eles preferem. Rapha, por exemplo, ainda tem o nome masculino gravado no RG, mas carrega uma carta da sua médica atestando sua identidade feminina, que ela mostra onde for, pedindo para ser tratada como Raphaela. Essa é uma mudança recente no Brasil, nem todos os lugares aceitam o pedido. Mas Rapha já sente uma mudança positiva, uma aceitação crescente, mudança da qual ela faz parte.
Quando a conheci, ela era bem diferente do mulherão que faz sucesso na internet. Rapha tinha 15 anos, era tímida e de aparência frágil. Chegou para a entrevista de braços dados com a mãe, andando em passos delicadamente calculados, em meio ao shopping onde as pessoas a olhavam de canto do olho. Ela vivia as transformações da puberdade junto com o tratamento para reter os hormônios masculinos – tudo sob orientação de médicos do Hospital das Clínicas, onde há um núcleo de atendimento a transexuais.
Naquela época, sofria perseguição de professores e diretores. No colégio onde estudara desde pequena, era proibida de usar o banheiro feminino. Como qualquer outra adolescente de sua idade, não ousava entrar no banheiro masculino, então o jeito era segurar o xixi a manhã toda. Quando sua mãe soube, resolveu mudar de cidade em busca de uma educação mais progressista. Rapha foi recusada por sete escolas particulares de São Paulo. Acabou matriculada em um colégio para alunos com dificuldade de aprendizado ou alguma deficiência.
Ela era uma das muitas jovens transexuais que tinham o direito à educação violado, mas foi uma das poucas que teve coragem de contar sua história. Seu caso foi parte de matéria sobre intolerância nas escolas que escrevi para a revista Época em 2009. Um ano depois, escolas da rede estadual paulista começaram a registrar transexuais pelo nome e sexo de sua preferência. Rapha finalmente conseguiu matricular-se como “Raphaela” na escola estadual Professor Antônio Alves Cruz, onde todos a tratavam como aluna.
Dois anos depois, quando ela estava com 17, voltamos a nos encontrar, dessa vez para um perfil sobre sua trajetória para a revista Marie Claire. Rapha já estava mais confiante. Ela me recebeu vestida em um tomara que caia rosa, salto alto e muita maquiagem. Mas ainda vivia cheia de angústias sobre seu corpo e com dificuldades para ser aceita pela família. Seu pai se embananava nos pronomes femininos e masculinos. Nervoso, quando a apresentava a algum conhecido, já dizia logo: “Essa é minha filha Raphaela, ela é trans”.
Rapha não esconde sua identidade. Mas, como ela brinca, “não ando com cartaz pendurado no pescoço”. Quem deve e não deve saber sempre foi uma questão delicada que ela foi aprendendo a administrar. Agora que ficou conhecida na Internet, a questão ganhou outra dimensão. E ela se incomoda quando novos admiradores jogam seu nome no Google e acham a reportagem sobre sua história.
O problema não é que a matéria "revela" a transexualidade, ela mesmo já abriu isso diversas vezes – e com ênfase – nas redes sociais. “O que me incomoda é que as pessoas ficam emocionadas, escrevem dizendo que choraram ao ler minha história. Eu não quero que tenham pena de mim. Muita coisa mudou de lá pra cá, eu mudei”. Rapha superou as questões da infância e adolescência. Concluiu o ensino médio, foi aceita pelas pessoas que ama e, o mais importante, conquistou o respeito próprio e autoconfiança. Hoje ela se prepara para a cirurgia de mudança de sexo, mas com o pé no chão. “A cirurgia é pra mim, pra me sentir completa e aliviada, essa é minha única expectativa. Sei que o resto não muda. Os outros problemas, principalmente na relação com os outros, vão continuar iguais”.
Quando era adolescente, Rapha sonhava com uma vida num corpo “normal” de menina. E hoje, se tivesse poderes mágicos e pudesse mudar a história, ainda escolheria nascer menina? “Não mudaria minha história. Nasci saudável, numa família com boas condições e amadureci cedo. Se tivesse nascido uma menina, teria sido mimada, acho que hoje seria insuportável”.
Talvez Rapha tivesse um comportamento parecido com as “amigas” e “amigos” do Facebook que lhe desfiam ofensas gratuitas. Por isso mesmo, porque ela conhece bem os pontos fracos desses tipos, suas respostas às agressões são impagáveis. Rapha costuma começar com educação, depois usa ironia, mas, quando se irrita... Basta dizer que os agressores não costumam voltar à sua página.
O tiro é tão certeiro que ela só ganha mais fãs. “Sambou na cara dazinimiga” e “Divou!” são algumas das muitas mensagens de apoio. Assim, ela vai se fortalecendo com a rede de quem a admira. Talvez seja esse o segredo do sucesso da sua personagem, Queen B. Na rede virtual, suas fotos podem parecer retratar apenas mais uma jovem bonita e sensual. Mas, por dentro, a vida real deu à Rapha a força da singularidade.
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