Cinco homens rezaram juntos em voz baixa, ao lado do padre e de um grupo de assistentes sociais. Revezaram-se para carregar o caixão até o jardim do cemitério municipal, na zona leste de São Paulo. Despediram-se emocionados, um a um, pelo pequeno visor de madeira aberto antes do sepultamento. Depois do enterro, voltaram ao vaivém diário nas ruas.
"A família do morto não foi encontrada", conta o vigário Julio Lancellotti, da pastoral católica do Povo da Rua. "Mas os irmãos de rua estavam lá para dizer adeus."
João Carlos Rodrigues, de 55 anos, foi enterrado em uma vala individual na manhã desta segunda-feira. É uma das quatro pessoas encontradas mortas nos últimos cinco dias em São Paulo, onde uma onda sem precedentes de frio é registrada pelo menos 10 dias antes do início oficial do inverno.
"Morreram de frio", diz o sacerdote, conhecido por décadas de trabalho dedicado a grupos marginalizados como moradores de rua, usuários de crack, travestis e prostitutas da cidade. "E a previsão para os próximos dias é de temperaturas baixíssimas. Teremos um inverno de mais mortes."
Como muitos de seus companheiros de rua, Rodrigues fazia pequenos bicos coletando material reciclável e montando a estrutura de palcos para shows da prefeitura. "Soube que tinha alugado um quartinho na região do Belém", conta o vigário. "Mas os bicos secaram e ele teve que voltar para rua" - o valor médio do aluguel de um cômodo simples na região custa em torno de R$ 500.
À BBC Brasil, o religioso diz que reconheceu o cobertor que envolvia o corpo de João Carlos. "Ele buscou lá na igreja. Nós o conhecíamos. Era um cara que batalhava para sobreviver."
O corpo foi encontrado na escada de uma estação de metrô na última sexta-feira, quando os termômetros da cidade registraram temperatura mínima de cinco graus. Testemunhas contam que o homem teve convulsões antes de morrer, sozinho, ao lado da mochila onde guardava roupas doadas e documentos.
"A situação que o povo da rua vive hoje em São Paulo é como a dos refugiados na Europa: ninguém os quer. Aqui, são refugiados urbanos. Onde estão, incomodam. São deportados dentro da cidade, sempre de um lado para o outro", lamenta o padre.
Homenagens
Na madrugada desta segunda-feira, o Centro de Gerenciamento de Emergência (CGE) registrou a temperatura mais baixa dos últimos 12 anos em São Paulo: 0 grau. A última semana trouxe recordes sucessivos de frio na cidade - tudo isso antes do início oficial do inverno, que começa no próximo dia 21.
Em solidariedade às vítimas do frio, um ato foi realizado na manhã de segunda-feira, em frente a um shopping center da avenida Paulista, onde o corpo Adilson Roberto Justino, outro morador de rua, foi encontrado na madrugada de domingo.
Um cobertor cercado por velas, flores e uma cruz de madeira foi colocado no centro da manifestação, que reivindicava a participação dos moradores de rua na criação de políticas públicas e o uso de prédios públicos vazios do centro da cidade para abrigar esta população.
Como ocorreu nos velórios, outras pessoas em situação de rua homenagearam os mortos com discursos emocionados na calçada da avenida. Além de João Paulo e Agostino, um homem e uma mulher ainda não identificados foram encontrados mortos na região de Santana e do Terminal Rodoviário do Tietê, ambos na zona norte da cidade.
Procurada pela BBC Brasil, a prefeitura de São Paulo se recusou a comentar as mortes relacionadas ao frio. Os primeiros laudos do Instituto Médico Legal indicam que a causa oficial das mortes foi "insuficiência respiratória aguda".
Políticas públicas
Quando os termômetros ficam abaixo dos 13 graus, a prefeitura coloca em prática uma operação denominada "Baixas Temperaturas", que amplia "em caráter excepcional" o número de vagas em abrigos.
"A rede de acolhimento da Prefeitura possui cerca de 10 mil vagas fixas, mas a rede foi ampliada em mais 1.437 vagas emergenciais. Há ainda a possibilidade da abertura de alojamentos de emergência, caso as 11.437 vagas ofertadas forem insuficientes", diz a prefeitura, em nota.
Segundo o último censo destinado a esta parcela da população, cerca de 15 mil pessoas vivem nas ruas da maior cidade do país.
"São mais de 500 profissionais envolvidos neste trabalho que consiste na identificação, aproximação, escuta e encaminhamento, das pessoas que aceitam, para a rede de Proteção Especial como Centros de Acolhida", prossegue a prefeitura. Nos abrigos, segundo a administração, os acolhidos "têm acesso a acolhimento, com camas, cobertores, travesseiros, banho, alimentação e kits de higiene pessoal".
O atendimento, no entanto, é criticado pela pastoral e por grupos que atuam junto à populaçaõ de rua.
"Os albergues não podem ser a única resposta" , diz o padre Lancellotti. "A máquina da prefeitura é muito lenta, burocrática e institucional. Não tem leveza de dar respostas ágeis".
Ele conta que, segundo o censo, 40% das pessoas que vivem nas ruas passaram em algum momento pelo sistema prisional. "O esquema massificado dos abrigos reproduz o esquema penitenciário. São espaços fechados e padronizados, onde centenas de pessoas dormem cercadas por câmeras de segurança e policiais."
Para o especialista, as políticas públicas para a população de rua não levam em conta as opiniões e interesses deste grupo. "Eles querem autonomia e participação. Enquanto não forem ouvidos, as formas tradicionais de antedimento continuarão falhando. Oferecer autonomia, por meio de alugueis sociais ou pelo estímulo a iniciativas criadas por eles mesmos, é o único caminho efetivo para o resgate da população de rua."
Segundo dados levantados pela comissão de finanças da Câmara Municipal, cada morador de rua custa R$ 1.500 à prefeitura. "É um dinheiro muito alto, mal empregado", diz o padre. "A maior parte é gasta com segurança, em vez de respostas mais personalizadas e baratas." Questionada pela reportagem, a prefeitura preferiu não comentar as críticas do padre.
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