Ao completar 450 anos neste domingo, o Rio de Janeiro registra avanços e enfrenta desafios que se arrastam há décadas.
A ex-capital, considerada o cartão-postal do Brasil para o mundo, tem um mercado turístico que segue em crescimento, mas ainda enfrenta problemas de saneamento básico, violência, mobilidade urbana e infraestrutura turística.
A pouco mais de 500 dias da Olimpíada, o Rio é um grande canteiro de obras, com expansão do metrô, construção de BRTs (corredores de ônibus), VLTs (bondes de superfície), túneis e duplicação de estradas, além das instalações olímpicas.
A BBC Brasil selecionou cinco áreas e convidou especialistas para comentar os problemas atuais e desafios futuros da cidade.
Veja os principais trechos das entrevistas:
1) IMPACTOS E LEGADO DOS GRANDES EVENTOS
O geógrafo americano Christopher Gaffney viveu os últimos seis anos no Rio de Janeiro analisando os impactos dos grandes eventos sobre a cidade. Suas pesquisas e análises foram destacadas na mídia brasileira e internacional e seu trabalho de pós-doutorado na Universidade de Zurique tem como tema o legado e os problemas da Copa do Mundo e da Olimpíada para os cariocas.
BBC Brasil – Quais são os principais impactos e o legado que a Copa e as Olimpíadas deixarão para o Rio de Janeiro?
Christopher Gaffney – Na minha visão o legado principal é uma cidade mais cara, mais excludente, mais fragmentada e mais privatizada. É a consolidação da ordem de poder na cidade. Há obras de mobilidade, mas faltou entender o transporte associado à moradia e ao trabalho. A Zona Sul e o Centro ainda concentram 60% de todos os empregos no Rio, e poderia ter havido mais investimentos em moradias acessíveis na região central ou em trens para o subúrbio. Há uma ciclovia que ligará o Leblon à Barra, mas ao longo dos BRTs que levam à Zona Norte, não. Estamos pensando em projetos de turismo ou mobilidade urbana?
Teríamos tido um legado maior caso a Olimpíada tivesse sido concentrada na Ilha do Fundão, onde está a UFRJ, como previa o primeiro projeto. Teria havido alterações mais profundas, com impactos positivos para os mais pobres. Isso teria significado mais transportes na Baía de Guanabara, um modelo mais inclusivo de integração com os bairros do entorno e com a Zona Norte, como o Complexo do Alemão, Caju, Complexo da Maré, até mesmo a Baixada Fluminense, além de uma ligação de metrô com o centro da cidade. Focando na Barra, estamos reforçando a lógica vigente, a divisão entre periferia e bairros nobres.
BBC Brasil - O Rio tende a ganhar ou perder com os grandes eventos?
Gaffney – Eu diria que, para a maioria da população, a tendência é perder mais do que ganhar, por diversas razões. O carioca mais uma vez mostrou-se capaz de organizar grandes festas, mas a que preço?
A normalidade foi suspensa, com os feriados em dias de jogos, e reforçou-se a ideia de uma sociedade militarizada, que não entende as demandas dos mais pobres. Houve diversas polêmicas, remoções, dentre outros problemas. Os grandes eventos têm um lado festivo, que leva ao orgulho e ao patriotismo, mas têm também um lado perverso.
Nessa lógica perversa inclui-se a consolidação de medidas de exceção na segurança pública, por exemplo. E isso também aconteceu em Vancouver e Londres. Os grandes eventos não alteram de forma sustentável a lógica da segurança pública, com transformações de longo prazo. Ao contrário, estimulam a criação de soluções imediatistas e de exceção, cuja tendência é se tornarem permanentes, inclusive na legislação.
Além disso, a percepção de ganhar ou perder está atrelada à posição geográfica e à classe social de cada um.
BBC Brasil – O que o Rio pode tirar de lição para o futuro com a Copa e a Olimpíada?
Gaffney – Em grandes eventos, os benefícios são pagos por todos e distribuídos a poucos. Por isso, seria imprescindível atentar mais para a importância de haver consultas públicas. A população deveria ter uma influência muito maior sobre os planos olímpicos. Também é importante rastrear e monitorar o uso do dinheiro público, o que é muito difícil no Brasil. O cidadão deveria ser mais ativo, participar mais desses processos, porque não adianta reclamar só depois que já está tudo finalizado.__
2) SEGURANÇA PÚBLICA
Pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da UERJ, o sociólogo espanhol Ignacio Cano vive no Rio há mais de 15 anos e vem acompanhando o cenário de segurança pública na cidade, com diversos livros e artigos publicados, entre eles estudos sobre as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora).
BBC Brasil – Quais são os principais problemas atuais em questão de segurança pública no Rio de Janeiro?
Ignacio Cano – Os maiores problemas no momento são o elevado número de homicídios, os roubos também muito elevados e o domínio de grupos criminosos sobre alguns territórios.
BBC Brasil – Qual é o momento atual das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) e como o projeto de pacificação pode se desenvolver no futuro?
Cano – As UPPs enfrentaram uma grave crise e agora passam por reavaliação, mas a situação ainda é muito delicada. O programa de pacificação encontra-se num momento difícil, e o cenário não é muito favorável. Vamos ter que ver como evolui até 2016 e, se a trajetória até lá for negativa, a situação pós-Olimpíada pode ser complicada, com a já esperada diminuição do foco de atenção a essas iniciativas e, por consequência, dos recursos disponíveis.
No Complexo da Maré o Estado terá que assumir, e ainda não sabemos o que irá acontecer. Trata-se de um teste, uma grande oportunidade. Por um lado pode-se mostrar algo diferente, integrando mais a população. Por outro, pode-se reproduzir o desastre ocorrido no Complexo do Alemão, com tiroteios constantes, numa situação em que as pessoas praticamente não se beneficiaram da pacificação. Há o risco de a Maré se tornar um novo Alemão.
BBC Brasil – Quais devem ser os impactos dos grandes eventos sobre a segurança pública no Rio? E quais devem ser as preocupações para o futuro?
Cano – Os grandes eventos não alteraram fundamentalmente o panorama de segurança pública no Rio. O que mais trouxe alterações foi a UPP, no sentido de mudar as favelas da Zona Sul, mas nem Copa nem Olimpíadas vão alterar crucialmente as características da cidade. Não existe mais essa expectativa.
Quanto ao futuro, as preocupações deveriam ser tentar fazer uma cidade mais integrada e menos segregada, melhorando os índices de homicídios e tornando-se um território só, integrado. Os investimentos deveriam estar focados realmente na redução dos homicídios e na recuperação de territórios.
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3) MOBILIDADE URBANA
Carioca, o arquiteto e urbanista Pedro Rivera é o diretor do Studio-X Rio, uma rede global da Universidade de Columbia, nos EUA, cujo objetivo é repensar o futuro das cidades, com unidades em Amã, Nova York, Mumbai, Pequim, Tóquio, Istambul e Johannesburgo, além do Rio de Janeiro.
BBC Brasil – No que o Rio ainda está errando em matéria de mobilidade urbana, mais recentemente?
Pedro Rivera – A principal questão em mobilidade urbana hoje em dia é como fazer a pessoa migrar do carro para o transporte público. A demolição do elevado da Perimetral, no centro do Rio, é um bom exemplo disso. Sou totalmente a favor, mas usaram milhões para construir um túnel subterrâneo, quando esse dinheiro deveria ter sido usado para desenvolver mais opções de transporte coletivo. Mais BRTs, mais barcas, mais VLTs. Esse deveria ter sido o recado, a prioridade, e não o carro, mais uma vez. Também precisamos investir mais em ciclovias, na bicicleta como meio de transporte.
Nós destruímos nossas cidades para acomodar o carro, visando o transporte individual como prioridade, abrindo estradas e grande avenidas. Agora o desafio é retomar este espaço para a coletividade.
BBC Brasil – Quais são suas principais sugestões para o futuro do Rio em termos de mobilidade urbana?
Rivera – Uma das questões mais importantes é o estacionamento no centro expandido da cidade. As pessoas acham que têm o direito de estacionar na rua, mas na verdade trata-se de um privilégio. Quando eu estaciono meu carro na rua, estou usando um espaço que é de todos, para o meu benefício individual.
A partir disso, defendo que estacionar na rua seja proibido em todo o centro expandido (incluindo Botafogo, Tijuca, Glória). A cidade precisa ter uma política de estacionamento em via pública. Quantas vagas existem? Qual nossa é a meta? Qual é a política tarifária? É preciso começar a pensar o estacionamento no centro das grandes cidades como forma de reduzir o número de carros.
BBC Brasil – Você ajudou a criar um projeto de ciclovias para o centro da cidade que foi aceito pelo prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB). O que diz esse plano?
Rivera – As ciclovias do Rio são muito lineares. Na orla, na Lagoa, falta capilaridade, ruas do interior dos bairros também precisam ter as ciclovias. Nosso projeto prevê isso, a criação de uma malha cicloviária no centro da cidade. O custo está estimado em R$ 6 milhões, e o documento foi entregue ao prefeito na metade do ano passado. Recebemos o compromisso de que seria executado, e as obras já começaram.
A ideia é que as ciclovias se conectem às estações de metrô, barcas, à Central, e demais modais. A ciclovia precisa deixar de ser secundária, e tornar-se um investimento de prioridade, visto com importância. São no total 33 quilômetros de malha cicloviária no centro do Rio, que ajudarão a locomoção e a integração com os outros modais.
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4) SANEAMENTO BÁSICO/DESPOLUIÇÃO
Um dos mais respeitados estudiosos da Baía de Guanabara e do sistema de lagoas do Rio de Janeiro, o biólogo Mario Moscatelli acompanha há anos o panorama de saneamento básico e poluição na capital fluminense e mantém análises constantes do setor.
BBC Brasil – Quais são os maiores problemas do Rio de Janeiro em termos de saneamento básico e poluição atualmente?
Mario Moscatelli – Neste momento os principais problemas são a falta de políticas públicas para a habitação que sejam mais permanentes e constantes. Isso favorece uma ocupação desordenada do terreno da cidade, gerando o esgoto irregular, que acaba indo para as praias, lagoas, e para a Baía de Guanabara. E onde existe a ocupação ordenada, como na Barra, por exemplo, o poder público às vezes demora em instalar o saneamento básico. Do ponto de vista ambiental, rios, Baía de Guabanara e sistema de lagoas estão poluídos e pagam o preço de toda esta situação.
O Rio é uma cidade do século 21 com saneamento básico do século 18. E não são só as favelas que despejam esgoto no ambiente não. Na região metropolitana não há quase nenhum rio vivo, viraram todos valões de esgoto. Há despejo de esgoto no costão de São Conrado e na enseada de Botafogo, e Copacabana tem problemas quando chove. Flamengo tem influências da Marina da Glória e do rio Carioca, Ipanema e Leblon recebem esgoto do Jardim de Allah e o Leblon especificamente do canal da rua Visconde de Albuquerque. Na Barra, há problemas do Quebra Mar ao Pepê e ainda a contaminação pelas lagoas. Ou seja, todos bairros de classe média. São rompimentos de canos, conexões clandestinas e falta de saneamento mesmo.
BBC Brasil – Do que depende o futuro do saneamento básico no Rio?
Moscatelli – De forma geral as melhorias dependem de políticas permanentes e eficientes de habitação, controle da ocupação urbana em áreas ambientalmente sensíveis, programas de saneamento básico eficientes e a recuperação ambiental do que foi destruído. Ao longo das últimas décadas os recursos nunca faltaram e também não faltarão no futuro, o que falta para tudo isso se tornar realidade é vontade política.
Programas sérios de expansão do saneamento básico surtiriam efeito a longo prazo. São políticas de Estado, de 15 a 20 anos de duração. Mas o problema é que temos uma classe política desconectada da realidade e uma sociedade que quase não cobra nada.
BBC Brasil – Um dos grandes temas no momento é a despoluição da Baía de Guanabara antes da Olimpíada. Como você vê as ações na área?
Moscatelli – As Olimpíadas foram um motivo de esperança no que diz respeito a saneamento básico e despoluição da baía e das lagoas do Rio. Eu fui um dos que acreditou nisso. Mas agora, a pouco mais de 500 dias dos Jogos, eu já vejo que é um setor onde dificilmente haverá avanços, infelizmente.
Sobre o compromisso dos organizadores de limpar 80% da Baía de Guanabara, a solução a curto prazo teria sido a instalação de mais UTRs (Unidades de Tratamento de Rio), blindando, impedindo que estes rios levem esgoto e lixo para dentro da baía, e à medida em que a rede de saneamento básico fosse sendo instalada, num período de 15 a 20 anos, elas seriam desativadas. Mas agora, com tão pouco tempo, provavelmente instalarão ecobarreiras, que são como peneiras, nestes rios, para um efeito mais imediato. Quanto às lagoas da Barra, há dinheiro, projetos e empresas licitadas, mas há entraves agora por questionamentos às obras.
5) TURISMO
Cesar Cunha Campos é diretor da FGV Projetos, unidade de extensão e pesquisa da Fundação Getúlio Vargas que, dentre outras coisas, produz estatísticas e estudos para o Ministério do Turismo.
BBC Brasil – Nas pesquisas desenvolvidas pela FGV, quais são as principais queixas e elogios dos turistas ao Rio de Janeiro?
Cesar Cunha Campos – Ao entrevistar os turistas, percebemos que as maiores reclamações são quanto à limpeza, violência e o idioma, já que quase ninguém fala inglês ou espanhol. Apesar de ter havido avanços em segurança, os assaltos e a violência ainda assustam muito, sobretudo quando acontece algo com estrangeiros, como o turista que foi morto no Carnaval. Quanto aos elogios, os principais são as praias, o Carnaval e o Cristo Redentor como o grande símbolo do Rio. O Cristo e a praia de Copacabana ainda são inigualáveis no imaginário do turista estrangeiro.
BBC Brasil – No que o Rio poderia avançar nos próximos anos como destino turístico internacional?
Cunha – Precisamos investir mais em sinalização, em placas que orientem os turistas no trânsito e dentro de aeroportos, por exemplo, em português, inglês e espanhol, no mínimo, além de treinar mais pessoas nestes idiomas. Falta explicar ao turista como fazer as coisas. Ônibus, metrô, bilhetes, máquinas, como comprar ingressos. Tudo isso precisa ser modernizado.
Também falta estacionamento, vagas subterrâneas como em grandes cidades, como Paris, por exemplo. Em termos de vagas de hotéis até acho que estamos crescendo num bom ritmo, mas faltam mais hostels para acomodar os turistas mais jovens. Sempre comparamos o Rio com Londres, Paris e Nova York, e temos muito a melhorar. Mas ao lado de lugares como Buenos Aires e Cidade do México estamos muito bem posicionados.
BBC Brasil – Quais devem ser os principais impactos da Olimpíada para o Rio?
Cunha – O impacto de um grande evento como esse para o Rio é maior do que para destinos como Londres e Paris, onde já há uma infraestrutura de turismo mais consolidada e muita credibilidade internacional. Contando que tudo dê certo e que seja um sucesso, teremos aproveitado a oportunidade de mostrar o Rio para todo o mundo, prospectando novos turistas. Neste ponto haverá um grande legado, atraindo mais feiras, eventos e atividades de negócios. Haverá um reflexo adicional para o Amazonas e o Nordeste, destinos para onde o estrangeiro que vem ao Rio costuma ir também.
Haverá um legado em termos de mobilidade urbana. Metrô, VLTs, BRTs, duplicação da estrada da Joatinga, temos uma série de obras em curso que beneficiarão o turismo na cidade. Espero que surjam mais hostels, já que o perfil do turista olímpico, de acordo com as nossas pesquisas, e muito mais jovem do que o da Copa do Mundo. Gastam menos, mas ficam mais tempo, têm perfil mais diversificado. Os próprios atletas tornam-se turistas ao fim dos Jogos.
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