Acontecimentos traumáticos desencadeiam a trama dos dois últimos filmes da competição do 69º Festival de Cannes, Forushande, ou "o vendedor", na tradução livre do inglês, dirigido por Asghar Farhadi, e Elle, ou "ela", do francês, de Paul Verhoeven.
Depois de rodar na França seu último longa-metragem, O Passado, exibido na competição do Festival de Cannes em 2013, o iraniano Asghar Farhadi volta a seu país natal com Forushande, ou "o vendedor", na tradução livre do inglês. O diretor, que ganhou o Urso de Prata de direção em Berlim comProcurando Elly (2009) e o Urso de Ouro com A Separação (2011), faz uma mescla de realismo e teatralidade em seu novo trabalho.
O professor Emad (Shahab Hosseini) e sua mulher, a dona de casa Rana (Taraneh Alidoosti), acabaram de se mudar para um apartamento quando precisam evacuá-lo por perigo de desmoronamento. Um vizinho acaba lhes cedendo um outro lugar, habitado anteriormente por uma prostituta - ou, como ela é eufemisticamente chamada, uma "mulher de muitas companhias". Ela deixou objetos por lá e constantemente é procurada por clientes. Um dia, o interfone toca e, achando ser o marido, Rana abre a porta, sendo atacada por um desconhecido. Na volta do hospital, está traumatizada. Emad tenta protegê-la e acalmá-la, mas logo essa disposição dá lugar a uma atitude autoritária. Ele procura quem fez aquilo com a mulher, mas sem muito afinco. Por acaso, acaba topando com o responsável, o que provoca uma espiral descendente que coloca em risco o casal.
Farhadi trabalha dentro no registro realista, expondo sem panfletarismo o machismo e o controle do governo no Irã. Ao mesmo tempo exagera as situações e atitudes dos personagens, o que aproxima seus filmes de uma peça de teatro. Não à toa, existe um paralelismo entre a "vida real" do filme e a peça A Morte de um Caixeiro-Viajante, de Arthur Miller, que Emad e Rana encenam. Como em seus filmes anteriores, o diretor infunde Forushande de suspense, tornando o "quem fez" o motor da investigação dos personagens e da sociedade. Mas a verdade é que Forushande é menos redondo do que A Separação. Ainda assim, o filme agradou, e não se pode descartar a possibilidade de levar algum prêmio.
O holandês Paul Verhoeven (de RoboCop e Instinto Selvagem, entre outros), que não fazia um longa-metragem para cinema desde 2006, apresentou seu novo trabalho, o primeiro rodado na França. Elle é ousado, o que o torna candidatíssimo a um dos principais prêmios na cerimônia de amanhã.
Baseado no romance Oh, de Philippe Djian, adaptado para o cinema por David Birke, tem como personagem principal Michèle (Isabelle Huppert), dona de uma empresa criadora de videogames. Um dia, ela é estuprada, em casa. Mas trata tudo como se não fosse nada demais, para surpresa de sua melhor amiga Anna (Anne Consigny) e do ex-marido Richard (Charles Berling). Michèle é dura e não parece ter sentimentos nem pelo filho, o bobalhão Vincent (Jonas Bloquet), nem pela mãe, Irène (Judith Magre).
A reação inesperada de Michèle frente ao ataque talvez tenha a ver com sua relação com a violência. Os videogames que sua empresa faz são cheios de sexo e sangue, e ela foi testemunha do crime do pai, que matou um monte de jovens quando a filha tinha apenas 10 anos de idade. Aos poucos, ela fica mais próxima do vizinho Patrick (Laurent Lafitte), casado com a religiosa Rebecca (Virginie Efira), estabelecendo um jogo perigoso.
Michèle é uma personagem rara no cinema, uma mulher não apenas forte, mas complexa, imprevisível, ambígua. Verhoeven não faz o dever de casa para o espectador, não explica nada nem psicologiza nada. As conclusões são do público. Elle é uma fábula amoral, e não admira que nenhuma atriz americana tenha aceitado fazer o papel. Sorte de Isabelle Huppert, que arrasa no papel e é a principal rival de Sonia Braga na corrida pelo prêmio de atuação feminina. Mas, com Verhoeven em tão boa forma, o filme, na verdade, está mais na disputa por um dos troféus principais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário