segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Menina sonha com vaga em balé russo para deixar a Cracolândia


Vitória Beatriz foi selecionada para audição da Escola Bolshoi no Brasil.
Há sete anos ela reside na região conhecida por abrigar usuários de crack.

Lívia MachadoDo G1 São Paulo









É no diminuto espaço de sua casa, entre a geladeira e o fogão, que Vitória Beatriz Oliveira, de 9 anos, treina os passos que deverá apresentar em Joinville (SC), na sede brasileira da renomada escola russa, o Teatro Bolshoi.
Ela foi selecionada em um projeto social na região da Cracolândia, no Centro de São Paulo, para a audição nacional que ocorre de 17 a 19 de outubro. Foram tantas piruetas nas últimas semanas que a porta do fogão acabou danificada. Beatriz bateu o pé no vidro durante um dos ensaios na cozinha. Não machucou, mas levou uma bronca. "A única coisa ruim do balé é que ela quebrou meu fogão", brinca a mãe, Rosana Oliveira.
O fogão serve como barra para que Beatriz treine os passos do balé em casa (Foto: Lívia Machado/G1)O fogão serve como barra para que Beatriz treine os
passos do balé em casa (Foto: Lívia Machado/G1)
A intensidade dos treinos caseiros tem fundamento. Beatriz disputará com quase mil crianças. Em 2013, segundo dados do Bolshoi, foram 46 candidatos por vaga. A bolsa de estudos é o atual sonho individual da menina, e também o passaporte para que sua família deixe a área conhecida por abrigar usuários de crack.
Bia reside com a mãe e dois irmãos no local há sete anos. A região foi a saída encontrada por Rosana para conseguir um aluguel mais barato. “O povo não enxerga que na Cracolândia também tem família, trabalhador, criança que não é usuário", lamenta.
Em janeiro, os quatro foram despejados da pensão em que viveram durante sete anos. O dono fechou parceria com a Prefeitura e o espaço passou a hospedar usuários do programa Braços Abertos. O projeto da gestão municipal oferece emprego e moradia para incentivar os dependentes a abandonar o vício.
A alternativa foi alugar um cômodo em um prédio improvisado como moradia, na mesma rua. O imóvel pertence ao mesmo dono da pensão, mas abriga um número menor de dependentes químicos. Na nova casa, o piso é menos barulhento e permite que Beatriz rodopie sem que os vizinhos do andar inferior reclamem.
As portas e janelas, porém, devem permanecer sempre fechadas. O varal foi instalado no banheiro para proteger as roupas da fumaça. “Se deixar para fora, fica cheirando droga”, garante a matriarca. Rosana revela que por conta do programa da Prefeitura, os usuários passaram a consumir drogas dentro das pensões. Descobriu em uma consulta o impacto do ambiente na saúde da prole.
"O médico perguntou quem na minha casa usava droga. Eu falei que ninguém. Ele disse que as crianças estavam sendo afetadas de inalar por tabela. Comecei a fechar tudo, comprei Bom Ar, mas mesmo assim passa. É muita droga, é perigoso."
Beatriz ao lado da mãe e dos irmãos, no cômodo onde moram na Cracolândia  (Foto: Lívia Machado/G1)Beatriz ao lado da mãe e dos irmãos, no cômodo
onde moram na Cracolândia
(Foto: Lívia Machado/G1)
Descoberta
O balé entrou na vida de Beatriz em 2010. Rosana trabalha como cozinheira e, naquele ano, não tinha com quem deixar a filha em dois dias na semana, no período vespertino. Notou um grupo de meninas uniformizadas de rosa andando pelo bairro. Foi atrás e descobriu onde ficava a escola de balé.
As aulas gratuitas são oferecidas desde 2009 pela Cristolândia, projeto social da igreja evangélica batista. À época, Beatriz não tinha idade ainda para ingressar, e a turma já estava em um estágio mais avançado. A insistência e o desespero da mãe fizeram com que a professora Joana Machado, coordenadora da Cristolândia, abrisse uma exceção. “A gente não pegava crianças muito pequena, com menos de seis anos, por receio de elas terem alguma dificuldade. Mas a Rosana pediu muito. E descobrimos um grande talento na Bia”, conta.
Beatriz rapidamente se destacou no grupo. Demorou um pouco mais para conseguir fazer um dos clássicos movimentos, mas não tardou a calçar a desejada sapatilha de ponta. “No começo, ela não conseguia fazer o espacate. Aí a coleguinha tirou onda dela. Eu falava para ela treinar bastante, porque só faltava isso. Ela treinava em casa todo dia, no balé e ficou perfeito”, recorda a mãe.
Rosana diz que não mediu esforços para manter a filha na aula de dança. Revela que perdeu até um benefício do governo federal por permitir que Beatriz não fosse à escola nos dias em que tinha aula de balé.
Aula de balé do projeto social Cristolândia (Foto: AP)Aula de balé do projeto social Cristolândia (Foto: AP)
“Eu tive que mudar muita coisa na minha vida por conta desse balé dela. Eu tive que mudar de emprego, perdi o Bolsa Família porque a escola matriculou a Beatriz no horário errado. Ela estudava de manhã e mudaram para a tarde. Eu falei que ela não podia estudar a tarde e que ia faltar. Chamaram o Conselho Tutelar. Mas eu mantive ela no balé”.
No ano passado, a professora Joana fez contato com Priscila Yokoi, bailarina, e parceira da Escola Bolshoi. Todos os anos Priscila realiza um evento em Paulínia, no interior de São Paulo, para garimpar novos talentos, e convida representantes da filial brasileira da escola russa. A seleção funciona como um pré-teste para disputar o Bolshoi. Em 2013, Beatriz foi aprovada. Como não tinha completado 9 anos, idade mínima para fazer o teste e ingressar na escola, a audição foi postergada para este ano.
A família, as colegas de turma de Beatriz e um grupo de missionários da Cristolândia irão em caravana para Joinville para acompanhar o teste, que tem três dias de duração. No primeiro o teste é físico, no segundo, artístico, e no terceiro, o que a escola denomina de "aulão", na qual é feita a triagem. Após 24 horas, ou seja, no dia 20 de outubro, os selecionados são anunciados. As aulas começam em fevereiro de 2015.
O tão treinado espacate é feito na cozinha da casa  (Foto: Lívia Machado/G1)O tão treinado espacate é feito na cozinha da casa
(Foto: Lívia Machado/G1)
A família e as professoras de Beatriz não têm nenhuma dúvida de que ela será aprovada. A própria menina garante, balançando a cabeça em sinal de sim, ao ser questionada se acredita na conquista.
A mudança de cidade, entretanto, está condicionada a outro fator. Jennifer, de 17 anos, primogênita de Rosana, não quer sair de São Paulo. Ela deseja cursar medicina em uma faculdade paulista. “Eu tenho certeza que a Beatriz vai ser aprovada. Única coisa que pega de mudar daqui é que a minha filha mais velha não quer ir. E só vou com os três", explica.
Desde que descobriu a existência do Bolshoi no sul do país, Beatriz passou a idealizar a estrutura física e material da escola. Imagina enormes e múltiplas salas de aula, com espelhos gigantes, incontáveis figurinos. "Não sei explicar como são, mas devem ser lindos."
A escola já existe com minúcia de detalhes na imaginação da mini-bailarina, que diz dançar sempre sorrindo “porque é mais bonito”. E o que é mais legal da dança? “As coreografias”. Sobre a parte chata, rebate na hora: “Nada, não tem. Eu adoro tudo."

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