"Espelho, Espelho Meu" ainda nem saiu de cartaz e outro filme baseado no mesmo conto de fadas estreia mundialmente nesta sexta-feira (31). "Branca de Neve e o Caçador", porém, abandona o tom doce e colorido da fábula e investe no que ela tinha de mais sombrio, sem ser gótico. Mais do que isso: inova ao colocar a mocinha, antes indefesa, de armadura no campo de batalha. O fato de ela ser interpretada por Kristen Stewart, estrela da "Saga Crepúsculo" e do vindouro "Na Estrada", só ajuda na ambição de colocar a superprodução no topo das bilheterias.
O ponto de partida é o mesmo da história escrita pelos irmãos Grimm, embora de cara já demonstre uma diferença fundamental. Ao espetar o dedo no espinho de uma rosa solitária em meio à neve no jardim do castelo, a rainha de um reino indeterminado deseja que a filha em seu ventre seja "branca como a neve, com cabelos pretos como o corvo e forte como esta rosa". A alusão à força, ausente do conto de fadas, é uma das muitas liberdades que os roteiristas (entre eles o iraniano Hossein Amini, de"Drive") tomaram e pavimenta o caminho para que depois Branca de Neve vire, digamos, uma guerreira, mesmo que improvável.
O espírito é o da fantasia medieval, tão na moda desde o sucesso da série "Game of Thrones" – música celta e a paisagem úmida das colinas da Grã-Bretanha. Há um parentesco forte com os filmes da série "O Senhor dos Anéis" e produções similares da década de 1980, como "O Feitiço de Áquila" e "A Lenda", de onde o diretor estreante Rupert Sanders, egresso do mercado publicitário, evidentemente buscou inspiração.
Trafegar por essa atmosfera pode ser arriscado, mas o acerto de "Branca de Neve e o Caçador" é, na medida do possível, tentar manter os pés na realidade e abolir os sinais de doçura que o conto de fadas, celebrizado pela Disney, ganhou com o tempo. O universo fantosioso de Sanders é impiedoso e ameaçador, com pobreza evidente, lama por todos os lados, sinais de podridão e anões que dizem gostar de matar mulheres.
A madrasta Ravenna, interpretada por Charlize Theron, simboliza bem essa visão de mundo e é o que o filme tem de melhor. Ela se casa com o pai de Branca de Neve, um rei viúvo, e na noite de núpcias já diz a que veio: "As mulheres são usadas pelos homens e depois jogadas como sobras aos cachorros", afirma, num surto feminista, para depois tomar o trono e finalmente se tornar rainha má.
Ravenna faz jus ao título. Vaidosa, a feiticeira suga (literalmente) a juventude de garotas para se manter bela. Tem mais: come vísceras usando garras de metal nos dedos, quase arranca o coração de um rapaz (numa referência à cena de "Indiana Jones e o Templo da Perdição") e é tão malvada que ao apertar uma flor a transforma em cinzas. Não bastasse, é praticamente imortal, a não ser por seu ponto fraco: Branca de Neve, a única mais bela do que ela, de quem precisa comer o coração (!) para nunca mais se preocupar em envelhecer.
Um personagem extremo assim teria tudo para cair no exagero e virar uma caricatura. Theron anda pela corda-bamba, mas consegue se manter íntegra até o final, numa performance poderosa, auxiliada por um raro lampejo que se tem do passado de Ravenna e de sua transformação no que ela é no presente. O quadro é completado por uma maquiagem competentíssima, efeitos especiais de primeira (a metaforfose da bruxa em corvos é sensacional) e um figurino exuberante, da oscarizada Colleen Atwood.
E Branca de Neve? Bem, Kristen Stewart mantém as mesmas expressões e os olhos marejados que aprendeu na "Saga Crepúsculo" – afinal de contas, eles funcionam –, e convence, inclusive, com sua relação sobrenatural com animais (ela doma até um troll). O mesmo não se pode dizer de seu ímpeto guerreiro rumo ao final. De uma princesa que mal sabia se virar ela passa a comandar um exército, com direito a discurso motivacional e tudo mais. Não chega a ofender, mas também não conta pontos a favor.
O mesmo se pode dizer dos personagens masculinos, meros adereços para as mulheres. Até o caçador vivido por Chris Hemsworth, o Thor da Marvel, que estranhamente pulou de uma ponta no conto de fadas para o título do filme. Sim, é ele quem conduz a heroína pela maligna Floresta Negra e pelo resto da história, mas não há nada que faça dele um verdadeiro protagonista. Esse papel talvez coubesse a William (Sam Claflin), filho do duque Hammond e interesse amoroso de Branca de Neve, que, sabe-se lá por que, nunca se concretiza.
Sobram os anões, um timaço de atores encolhidos digitalmente, mais ou menos como os hobbits de Peter Jackson. Bob Hoskins, Ian McShane, Nick Frost, Toby Jones e Ray Winstone, entre outros (eles são oito no total), se contentaram em aparecer pouco, usar penteados excêntricos e ser o alívio cômico do filme, por mais que tentem bancar os durões, desconstruindo a meiguice da Disney. "Se alguém começar a assobiar, arrebento", alerta um deles.
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