Evanildo da Silveira/BBC -
Foi um longo trabalho, mas
o resultado compensou.
Depois de cerca 30 anos de
estudos, o Brasil está prestes a começar os testes em
humanos de uma vacina
contra a febre reumática,
doença autoimune responsável por problemas cardíacos em cerca de 15 milhões
de crianças todos os anos,
no mundo inteiro. Ela foi
desenvolvida pelo Grupo
de Pesquisa em Febre Reumática do Laboratório de
Imunologia do Instituto do
Coração (Incor) do Hospital
das Clínicas da Faculdade
de Medicina, da Universidade de São Paulo (USP).
Segundo a coordenadora
da equipe, Luiza Guilherme
Guglielmi, a enfermidade
atinge crianças e adolescentes, de 5 a 18 anos, suscetíveis geneticamente à bactéria Streptococcus pyogenes.
“Ela se inicia após infecção
de garganta, principalmente
com febre”, explica.
No princípio, ela pode causar poliartrite (dor nas articulações),
que costuma desaparecer
em não muito tempo.
“Se não tratada, no entanto, portadores de genes
de suscetibilidade, podem
ter como sequelas a doença
reumática cardíaca (DRC),
que causa lesões nas válvulas do coração, glomerulonefrite (rins) e coreia de
Sydenham (sistema nervoso
central)”, acrescenta.
PROBLEMAS
CARDÍACOS
A DRC acomete o pericárdio (membrana que
envolve externamente
o coração), o miocárdio
(músculo do órgão) e o endocárdio (membrana que
reveste o interior do miocárdio e limita as cavidades
cardíacas), podendo causar
danos progressivos e permanentes, desencadeando
insuficiência cardíaca, que
exige cirurgia.
“A pericardite e a miocardite apresentam bom
prognóstico com resolução
em até 30 dias após a infecção”, diz Luiza. “Já a endocardite, promove lesões de
válvulas, principalmente
mitral e aórtica, que pode
levar ao quadro de insuficiência cardíaca.”
Embora sejam graves,
essas sequelas só atingem
de 3 a 5% dos infectados.
Mesmo assim, os números
absolutos são grandes, com
cerca de 30 mil novos casos
por ano no Brasil. Desses,
cerca de 30% poderão necessitar de cirurgia cardíaca, o que a torna uma das
doenças mais caras para o
sistema público de saúde.
Nos demais, a Streptococcus pyogenes causa apenas inflamação na garganta, que pode ser facilmente
curada com antibióticos
comuns, como a penicilina
ou benzatina. O problema
é que em muitos países não
desenvolvidos, esses medicamentos não são acessíveis
a todo mundo. Por isso, a
febre reumática também é
considerada uma doença
relacionada às condições
socioeconômicas de uma
região ou país.
Nas crianças e adolescentes suscetíveis à bactéria, a infecção desencadeia
uma reação autoimune do
organismo. Ou seja, o sistema imunológico, além de
atacar o micro-organismo,
se volta também contra as
células da própria pessoa,
no caso, do coração.
Segundo Luiza, isso
ocorre porque uma proteína da membrana da
S. pyogenes, chamada M,
é muito semelhante às do
coração, das articulações e
do sistema nervoso central
do ser humano. Isso confunde as defesas do corpo,
que passam a atacar não só
a bactéria, mas também os
tecidos sadios do órgão cardíaco. A bactéria até pode
ser eliminada, mas os anticorpos “acreditam” que ela
ainda esteja lá e continuam
a guerra, agora contra quem
deveriam defender.
TRINTA ANOS
DE ESTUDOS
A vacina tem como objetivo barrar esse processo,
acabando com o conflito
indevido, tecnicamente
chamado de reação cruzada. Os trabalhos que levaram ao seu desenvolvimento começaram em 1988,
com o estudo detalhado
da febre reumática, suas
causas e efeitos. O primeiro
artigo científico do grupo
de Luiza foi publicado na
revista americana Circulation, em 1991, e teve alto
impacto no conhecimento
cientifico internacional.
“Ele abriu a possibilidade de várias outras publicações do nosso grupo sobre
a doença”, conta a pesquisadora. “O conhecimento
gerado nos guiou para o desenvolvimento de um imunizante para preveni-la.”
A ideia era criar um
produto que induzisse o
sistema imunológico humano a produzir grandes
quantidades de anticorpos
específicos contra a bactéria S. pyogenes, ou seja,
que não atacassem também o próprio organismo,
no caso, o coração.
“Foi um grande desafio”, lembra Luiza. “O desenho estabelecido para a
criação da vacina, a partir
de peptídeos (partes de
proteínas) sintéticos demandou uma quantidade
enorme de trabalho pelo
período de dois anos.”
O passo seguinte foi a
realização de testes pré-clínicos em modelos experimentais de camundongos
normais e transgênicos
(portadores de moléculas
humanas HLA - antígeno
leucocitário humano, na
sigla em inglês), classe II,
que são responsáveis pelo
desencadeamento da resposta imunológica.
“Na sequência, obtivemos financiamento do
Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES),
para o desenvolvimento
do produto, em colaboração com o Instituto Butantan”, diz Luiza.
Denominado Vacina
adsorvida estreptocócica A
- StreptInCor, o imunizante
passou por vários testes nos
camundongos, com a formulação em hidróxido de
alumínio (adjuvante, ou
seja, substância que reforça a ação de um medicamento) em três doses: 50,
100 e 200 microgramas/
ml, e em pequenos porcos,
de 20 a 30 kg (mais ou menos o peso de uma criança), que, do ponto de vista
biológico, são parecidos
com humanos. Neste caso,
os animais foram acompanhados por ecocardiograma, como teste segurança.
Nos roedores, foram injetadas altas quantidades
da bactéria S. pyogenes, que
seriam capazes de matá-los.
No caso dos suínos, como
eles são imunes à febre reumática, o objetivo da infecção era criar um abcesso.
“Todos os resultados
apontaram para um imunizante eficaz (80% dos
camundongos vacinados
sobreviveram), com a produção de altos níveis de anticorpos específicos contra o
micro-organismo e sem reação cruzada”, explica Luiza.
“Isso mostra que há
uma grande possibilidade
do produto induzir nos humanos uma boa proteção,
sem causar reações adversas
e doença autoimune.”
De acordo com ela,
há muitos países, principalmente na África, mas
também alguns desenvolvidos, como Austrália
e Estados Unidos, que estão esperando esta vacina
para a febre reumática.
“A própria Organização
Mundial da Saúde (OMS)
está aguardando sua produção”, diz. “Mas agora não
depende mais de nós. Ela foi
já aprovada pela Comissão
Nacional de Ética e Pesquisa
(Conep), mas ainda está em
fase de registro na Agencia
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ambos os
órgãos regulatórias brasileiros, para ensaios clínicos.
Infelizmente, não há data
para a aprovação desta última etapa.”
Quando isto ocorrer, os
testes serão realizados em
48 indivíduos sadios, divididos em quatro grupos de
12. Um receberá placebo, e
outros três doses diferentes
do imunizante (50, 100 e 200
microgramas/ml).
“Se tudo der certo, ela
colocará o Brasil em evidência, como um dos países
que mais contribui para o
conhecimento sobre a febre
reumática e seu controle”,
garante Luiza. “Além disso,
nosso produto poderá servir
de modelo para o desenvolvimento de vacinas para outras doenças autoimunes.”
http://www.reportercatireiro.com/2019/02/febre-reumatica-vacina-que-pode.html
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