sábado, 24 de setembro de 2011

Ampliam-se manifestações contra venda de atendimento nos hospitais dirigidos pelas OSs

Ampliam-se manifestações contra venda de atendimento nos hospitais dirigidos pelas OSs

A inevitável partidarização da relação Governo-OSs é intensificada com a não obediência aos mecanismos formais de licitação e questão de pessoal

por Paulo de Tarso Puccini – médico sanitarista, doutor em saúde pública.

“Chorar o leite derramado não é tão inútil como se diz, é de alguma maneira instructivo, porque nos mostra a verdadeira dimensão da frivolidade de certos procedimentos humanos, porquanto se leite se derramou, derramado está, e só há que limpá-lo, e se abel foi morto de morte malvada é porque alguém lhe tirou a vida.” (Caim, José Saramago).

O fortalecimento financeiro e político das Organizações Sociais na saúde, essas máquinas devoradoras de recursos e dos princípios da gestão pública, preparou o salto da diferenciação no atendimento dos serviços estatais de saúde por meio da expansão da ”dupla porta”nos serviçosestaduais de São Paulo.Agora, esse “moderno modelo de gestão”aparece na sua forma completa, viabilizando o colapso do princípio da universalidade com igualdade de acesso no SUS.

A venda de até 25% dos atendimentos nos serviços estatais geridos por essas entidades privadas, manifestamente ilegal, causa indignação crescente na sociedade e gerou uma liminar movida pelo Ministério Público Estadual que afirma:a lei dos 25% e seu regulamento agridem frontalmente inúmeras normas constitucionais e infraconstitucionais e gerarão uma situação aflitiva, uma vez que os usuários do SUS perderão 25% dos leitos públicos dos hospitais estaduais.

A confiança dos gestores e políticos defensores das OS introduziumazelas no relacionamento com a categoria médica e outros profissionais de saúde. Os regramentos das funções de recrutamento, seleção e contratação, decorrentes dessa opção gerencial adotada, resultaram em vínculos sem concurso ou seleção pública e, em algumas vezes, sem qualquer vínculo empregatício formal. Essa precariedade do processo de contratação do pessoal convive com uma política salarial diferenciada, na dependência de uma das múltiplas formas de contratação utilizada. Há, por exemplo, multiplicidade de valores salariais entre os próprios médicos das OS que não se justificam por diferente grau de responsabilidade ou por carga de trabalho ou por produtividade ou por distância, como há, também, diferenças salariais entre estes e os demais médicos servidores públicos que já atuavam, inclusive, no mesmo ambiente de trabalho.

Muitas instituições médicas e de outras áreas, mudas diante do crescimento das OS, vieram agora a público manifestar sua inconformidade com a Lei dos 25%. Não se deve ocultar, entretanto, que foi a aceitação da transferência dos serviços estatais para essas organizações que criou o instrumento necessário para viabilizar a quebra da universalidade com igualdade de acesso como princípio do sistema público de saúde.

Não é pelo gosto do registro do equívoco ou apenas para dar publicidade à frivolidade da decisão dos que embarcaram na defesa eloquente das OS na saúde. Apontar o equívoco fundamenta o entendimento de que não há vitória contra a quebra da saúde como direito social enquanto não se enfrentar a utilização dessas entidades,limitando seu papel e não mais admitindo transferência do poder gestor de instituições públicas estatais da saúdeaentes privados.

As OS, na sua natureza, não visam apenas à produção de bens, mas sim assumir a gerência de serviços públicos estatais, segundo um contrato de gestão. Não são uma possibilidade de democratização, de participação da sociedade como alguns defendem. Elas nem se enquadram exatamente na concepção de “terceiro setor”, compreendido como um movimento autônomo de pessoas privadas em relação ao Estado, sem finalidade lucrativa, constituídas voluntariamente por particulares que visam à produção de bens e serviços públicos de interesse coletivo. No caso das OS, o ato constitutivo dessas empresas impõe a necessidade obrigatória de um reconhecimento, uma habilitação por parte do Estado – não há autonomia no processo de sua criação que se concretiza na vigência de um contrato de gestão.

É desta natureza imbricada com interesses que ocupam postos de comando no aparelho de Estado que se efetua um processo de qualificação exageradamente discricionário, levando a conflitos entre a forma de contratação e os dispositivos legais. Pareceresiniciais de Ministros do STF, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº1923/1998 sobre as OS, apontam esse vazio legal. Tal precariedade do processo de habilitação e contratação é, entretanto, parte inerente da natureza desta ideia moderna que nega princípios fundamentais nagestão da coisa pública.

Essa inevitável partidarização da relação autoridade outorgante e comando das OS é intensificada com a não obediência aos mecanismos formais de licitação no uso dos recursos públicos e na seleção e contratação do pessoal para a ocupação de postos de trabalho no setor público, abrindo-se para uma dinâmica clientelista e nepotista.Essa dinâmica política tem dado sustentação e força a essa alternativa que, apesar de tudo,ainda é defendida por alguns como mais um modelo de gestão, independente de agredir norma legalevalores ético-políticos.

Encaminhar concretamente uma necessária reforma política e o financiamento público das campanhas eleitorais, fortalecendo a democracia social brasileira, poderia iniciar-se com a decisão política de revisão legal dessa forma descontrolada de transferência de recursos públicos a essas entidades.

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